segunda-feira, 2 de novembro de 2009

TEARS IN RAIN: RESENHA E INTERPRETAÇÃO DO ENSAIO “BLADE RUNNERS SOMOS TODOS NÓS” DE ADÉLIA BEZERRA DE MENESES

Por Alessandro Jean Loro e Bruna Cristina Lampert

Considerado por muitos o melhor filme de ficção cientifica já feito, “Blade Runner” (aqui no Brasil lançado com o subtítulo de “O caçador de andróides”) alcançou tal êxito devido, principalmente, a seus efeitos especiais, que, diga-se de passagem, eram bem “avançados” naqueles idos de 1982. A maior parte dos expectadores da época não prestou atenção ao roteiro do filme, extremamente elaborado e recheado de pensamentos filosóficos, éticos e religiosos. Foi só depois, durante o início dos anos 90, que o filme alcançou o título de “cult", sendo um dos primeiros a ser reeditado em formato DVD.
Evidentemente, o roteirista Hampton Fancher não criou a história (o que esperar de um escritor de Hollywood?), mas uma adaptação do livro “Do Androids Dream Of Electric Sheep?” (algo como “Os andróides sonham com ovelhas elétricas?”, infelizmente lançado no Brasil sob o título de “O caçador de Andróides”, para pegar carona com o filme... o resultado não foi o esperado, visto o livro ser diferente do filme) de Philip K. Dick, a quem devemos ainda contos e livros que originaram adaptações como “Minority Report”, “O Vingador do Futuro”, “Assassinos Cibernéticos”, “O Pagamento” e “O Homem Duplo”. Assim sendo, temos a boa e velha Literatura em debate.
Antes de analisarmos o ensaio de Meneses, faz-se necessário relembrarmos a sinopse do filme:
Estamos em Los Angeles, no ano de 2019 (no livro, a história passa-se em São Francisco, no ano de 1992), em um mundo cyberpunk (onde a alta tecnologia contrasta com o decadente estado da sociedade). A Terra é um lugar imundo, poluído, um cenário urbanóide tão opressivo quanto a chuva ácida persistente, onde habitam apenas os seres humanos incapazes (física ou financeiramente) de viver nas colônias interplanetárias. Nesse mundo praticamente pós-apocalíptico, a tecnologia é muito avançada (claro, segundo os moldes da ficção científica de 1982...), possuímos carros voadores, naves interplanetárias e, é claro, andróides.
O termo andróide aqui está em seu sentido original, ou seja, uma forma biológica criada artificialmente com a forma humana, não um ser robótico como os filmes seguintes mostraram. Seriam algo como “clones”. Abaixo, a tradução “correta” do texto que abre o filme (Na versão brasileira, o termo “retirement”, “aposentadoria” em inglês, foi traduzido como “retirada”):

“No inicio do século XXI a Tyrel Corporation criou os robôs da série Nexus virtualmente idênticos aos seres humanos. Eram chamados de replicantes. Os replicantes Nexus 6 eram mais ágeis e fortes e no mínimo tão inteligentes quanto os engenheiros genéticos que os criaram. Eles eram usados fora da Terra como escravos em tarefas perigosas da colonização planetária. Após motim sangrento de um grupo de Nexus 6, os replicantes foram declarados ilegais sob pena de morte. Policiais especiais, os blade runners, tinham ordens de atirar para matar qualquer replicante. Isto não era chamado execução, mas sim ‘aposentadoria’.”

Um grupo de quatro (seis no livro) replicantes rouba uma nave interplanetária e vem à Terra em busca de seu criador, tendo como objetivo principal descobrir sua data de “ativação” (e, assim, descobrir seu tempo restante) e um modo de prolongar sua vida. Para “aposentá-los”, um detetive já “aposentado” (clichê hollywoodiano...) precisa voltar à ativa. Entra em cena o agente Deckard.
Durante o filme, Deckard conhece Rachael, a assistente de Tyrel, criador dos replicantes. Tyrel duvida dos métodos utilizados por Deckard para descobrir se alguém é humano ou replicante, o chamado “método Voight-Kampff”, e pede para testá-lo com Rachael. Deckard descobre que Rachael também é uma replicante, mas diferente pois não possuía um tempo de vida determinado e nela estava implantado um chip com as memórias da sobrinha de Tyrel. Há um envolvimento entre Deckard e Rachael posteriormente.
Um a um os replicantes são caçados, até o desfecho final com a cena conhecida como “tears in rain”, em que Roy, líder dos quatro replicantes fugitivos e único sobrevivente até o momento, percebe que chegou a “hora de morrer”, como diz. Sua frase final é uma das mais marcantes do cinema.
Baseando-se no filme, a professora de Teoria Literária da Unicamp e da USP, Adélia Bezerra de Meneses, escreveu um ensaio para a Folha de São Paulo intitulado “Freud também explica Blade Runner”, publicado na edição de 19 de maio de 1990. Posteriormente, quando organizou a coletânea “Do Poder da Palavra”, Meneses alterou o título do ensaio para “Blade Runners Somos Todos Nós”.
Nesse ensaio, a professora discorre “psicanaliticamente” sobre os principais temas discutidos no filme, principalmente sobre a relação entre memórias e emoções, o que Freud chama de “romance familiar”.
Os replicantes não possuíam memória, de modo que não poderiam expressar emoções. Por exemplo, durante o filme, Deckard recebe Rachael em seu apartamento e conversa com ela. Ela o questiona se ele a considera uma humana ou uma replicante. Tendo já feito o teste de “Voight-Kampff” e sabendo que Rachael é uma replicante, o agente tenta fazê-la lembrar de um fato ocorrido na infância, dizendo:

“—Lembra-se de quando tinha seis anos de idade, e você e seu irmãozinho foram ao porão de um edifício desabitado, brincar de médico? E ele mostrou o dele a você, e quando chegou a sua vez, você se acovardou e fugiu? Lembra-se?”

Sem possuir memórias, Rachael permanece calada, mas um novo traço mnêmico cria-se em sua mente. Esse “fato” ocorrido passa a fazer parte de suas memórias, mesmo que ela não tenha realmente vivido isso. Deckard “lhe dá” um passado.
Mais tarde, quando Deckard tenta beijá-la, Rachael recua. Em sua mente, a lembrança do fato “ocorrido” na infância a faz recuar. Ou seja, um fato passado é relembrado em um fato presente, fazendo com que a emoção sentida no passado seja sentida no presente, provocando a mesma reação.
Em busca de emoções, os replicantes colecionavam fotos, tentando remontar um passado que de fato não possuíam, mas que lhes serviria de base para as emoções futuras. “Se lhes for dado um passado, será criada uma base para a emoção”, é o que nos diz Bryant, chefe de Deckard.
Como a autora mesma diz, o filme não se esgota nessa simples analogia freudiana, sendo repleto de questões como: a arbitrariedade da duração da vida, a experiência de conviver com a finitude e com o medo, a busca da identidade, a crítica ao racionalismo, a dor de morrer e a dor do esquecimento. De todas essas questões, nos parece que duas fazem-se mais presentes: são elas a crítica ao racionalismo e a dor de morrer, somada a dor do esquecimento
“Penso, logo existo”, é o que Pris, uma das replicantes, diz ao engenheiro Sebastian. A máxima latina é usada com extrema ironia pela andróide. Evidente que, na Antiguidade, a ideia de pensar só poderia ser ligada ao ser humano. Logo, no momento em que criamos máquinas capazes de tal proeza, devemos nos perguntar: esses novos seres são apenas máquinas? Em uma pergunta mais audaciosa, podemos repetir a pergunta da Criatura a Frankenstein: “eu possuo alma, ou você esqueceu disso também?”.
Quanto à dor da morte e do esquecimento, vejamos a última cena do filme, já chamada pelos fãs de “tears in rain”. Após uma perseguição a Deckard, Roy, o último dos replicantes a ser caçado, senta ao lado do agente. A chuva caia torrencialmente sobre eles. Sabendo que está a minutos de sua morte, Roy diz:

“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi raios-C brilhando no escuro, próximo do Portal de Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como... lágrimas na chuva. Hora ... de morrer.”

O andróide abaixa sua cabeça e liberta um pombo branco que trazia em mãos. Por poucos segundos, avistamos um céu azul entre as nuvens escuras, para onde o pombo alça vôo. Interessante notar que o trecho “como lágrimas na chuva” não estava presente no texto original, sendo fruto da improvisação do ator Rutger Hauer.
Concluindo, o filme Blade Runner continua um cult movie, com seus temas filosóficos esperando por novos debates e interpretações. Uma pena que as novas gerações não consigam alcançar a magnitude do filme, ficando mais preocupados em ridicularizar os efeitos especiais e as poucas cenas de ação do filme. Vemos “apenas” cinco mortes durante o filme, e não mais que uma dúzia de disparos de armas de fogo. Temos sim, minutos e minutos de diálogos interessantíssimos, perdidos no tempo, como lágrimas na chuva.

Um comentário:

  1. Perfeito: forma e conteúdo. Gostei da retomada do filme que vcs fizeram, resumindo-o. Isso é que é preocupação com o leitor! A postura crítica, reflexiva acerca do texto da Adélia está estupenda. Parabéns! Estou muito orgulhosa de vcs!
    Vou habilitá-los para que publiquem no blog da turma!

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